Romanos 9.19.29
Por Hernandes Dias Lopes
Paulo trata agora de cinco verdades importantes:
Em primeiro lugar, Deus tem o direito de fazer o que lhe apraz com suas criaturas (9.19-21). Deus é o criador, e nós somos criaturas. Deus é santo, e nós somos pecadores. Deus é soberano, e nós somos limitados. Deus é o oleiro, e nós somos o barro. Queixar-se de Deus é o cúmulo da petulância, o máximo da arrogância. Assim como o barro não pode querer colocar-se no lugar do oleiro nem questioná-lo, também não podemos colocar-nos no lugar de Deus nem pôr em xeque seu direito absoluto e inalienável de dispor das suas criaturas como lhe apraz.
John Stott argumenta que Deus tem pleno direito de lidar com a humanidade caída conforme queira, seja de acordo com sua ira ou sua misericórdia. Deus não é apenas o Criador, é também o governador moral do universo. Em lugar algum sugere-se que Deus teria o direito de ''criar seres pecadores a fim de puni-los'', mas que ele tem o direito de ''lidar com os pecadores conforme ele queira'', perdoando-os ou punindo-os.
Existe uma justa e natural diferença entre a vontade preceptiva de Deus e sua vontade determinadora. Era da vontade preceptiva de Deus que os judeus não crucificassem o Senhor Jesus Cristo. Eles agiram dessa forma, contrariamente ao mandamento divino, e eram portanto culpados; apesar disso, era da vontade determinadora de Deus que o Salvador fosse crucificado, pois os judeus e os soldados romanos fizeram apenas o que ''sua mão e seu conselho de antemão determinaram que fosse feito'' (At 2.23). Embora a traição de Judas contra Cristo estivesse preordenada desde a eternidade como o meio de efetuar a redenção, foi Judas, e não Deus, quem traiu a cristo. As causas históricas secundárias não são eliminadas pela causalidade divina, mas antes se tornam certas. A vontade preceptiva de Deus é a regra de conduta para nós, ou seja, sua vontade revelada nas Escrituras, enquanto a vontade determinadora é o plano de operações para si mesmo, ou seja, sua vontade secreta.
Em segundo lugar, Deus tem o controle da vida do homem, e não o homem da vida de Deus (9.20-21). Paulo usa a figura do oleiro e do barro para ilustrar a autoridade de Deus sobre suas criaturas (Is 29.15,16; 64.8,9; Jr 18.1-6). William Hendriksen escreve:
Se até mesmo um oleiro tem direito, da mesma massa de barro, de fazer um vaso para honra e outro para desonra, então com certeza Deus, nosso Criador, tem direito, da mesma massa de seres humanos que por sua própria culpa precipitou-se no poço de miséria, eleger alguns para a vida eterna e permitir que os demais permaneçam no abismo da degradação.
A autoridade de Deus sobre a criatura é maior que a do oleiro sobre o barro. O oleiro não faz seu barro; mas tanto o barro quanto o oleiro foram feitos por Deus. Vivemos numa geração homocêntrica e antropolátrica, que busca sofregamente substituir o criador pela criatura. O homem besuntado de tola soberba quer destronar a Deus e ascender a seu trono. Aquele que não passa de pó e cinza quer arvorar-se contra o Criador e colocá-lo no banco dos réus para julgá-lo. É Deus, contudo, quem está no controle de todas as coisas, e não o homem. Não é o homem quem manipula a Deus; é Deus quem molda o homem como o oleiro faz com o barro.
Em terceiro lugar, Deus é glorificado tanto na salvação dos eleitos quanto na condenação dos réprobos (9.22,23). Os vasos de ira são os impenitentes, aqueles que se endurecem e foram endurecidos, aqueles que rejeitaram e foram rejeitados, aqueles a quem Deus suportou com paciência e em quem manifestou o poder do seu juízo.
Os vasos de misericórdia são aqueles a quem Deus escolheu por sua graça para sobre eles derramar sua misericórdia e dar-lhes a riqueza da sua glória. John Murray é absolutamente oportuno ao alertar para o fato de que na ira divina não existe malícia, perversidade, vingança, rancor, ou amargura profanos. O tipo de ira assim caracterizada é condenada nas Escrituras, e seria uma blasfêmia atribuí-la ao próprio Deus.
Warren Wiersbe destaca que o termo ''preparados'' em Romanos 9.22 não dá a entender que Deus tornou Faraó um ''vaso de ira''. Esse verbo é o que os gramáticos gregos chamam de voz média e indica uma ação reflexiva. Assim, a frase deve ser traduzida por ''prepararam a si mesmos para a perdição''. Deus prepara os homens para a glória (9.23), mas os pecadores se preparam para o julgamento. John Murray defende que é o próprio Deus quem prepara os vasos de ira para a perdição, porém a perdição imposta aos vasos de ira é algo para o que sua anterior condição os torna adequados. Há uma correspondência exata entre o que eles foram na vida presente e a perdição á qual estão destinados. Assim, os vasos de ira capacitam a si mesmos para a perdição; são os agentes do mérito que resulta em perdição. No entanto, somente Deus prepara para a glória.
Em quarto lugar, Deus por sua graça nos dá o que não merecemos (9.24-26). A graça não é concedida por critério étnico, cultural ou religioso, pois Deus chama seus eleitos não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios (9.24). Mesmo vivendo sem Deus no mundo, eles nos tornou seu povo. Mesmo sendo inimigos de Deus, ele nos fez amados (9.25). Mesmo vivendo sem esperança e sem Deus no mundo, mortos nos nossos delitos e pecados, Deus nos transformou em seus filhos, membros de sua bendita família (9.26). Concordo com Cranfield quando ele diz que a presença dos gentios na igreja é o sinal e o penhor de que a esfera de rejeição de Ismael, Esaú, Faraó e dos próprios judeus incrédulos não está finalmente excluída da misericórdia de Deus.
Em quinto lugar, Deus escolhe por sua graça para a salvação um remanescente fiel (9.27-29). A eleição da graça é para o remanescente. A salvação não é endereçada a todos os filhos de sangue de Abraão, mas aos filhos da promessa; não são os israelitas por nascimento, mas aos que são crentes pelo novo nascimento. Stott escreve: ''Apenas um remanescente seria salvo, o israel dentro de israel (9.6). Semelhantemente, conforme o versículo 29, em meio à total destruição de Sodoma e Gomorra, somente alguns seriam poupados - ou melhor, apenas Ló e suas duas filhas.
Solano Portela, ilustre escritor evangélico presbiteriano, faz uma importante síntese acerca da doutrina da eleição, que passo aqui a mencionar. Essa gloriosa doutrina foi ensinada por Jesus (Jo 5.21; 6.65; 10.27; 15.16), explanada por Paulo (Rm 9.1-16; EF 1.4,5-11), registrada por João, Lucas, e outros (Jo 1.12,13; At 13.48), aceita pelos patriarcas da igreja, por exemplo Policarpo, Irineu e Eusébio. Foi, porém, contestada pelos ramos heréticos da igreja, dos quais o maior expoente nos primeiros séculos foi Pelágio, defensor do livre-arbítrio irrestrito, em oposição a Agostinho, que defendia e enaltecia a soberania de Deus em todas as esferas, principalmente na salvação de almas. Foi esquecida pela igreja católica, na medida em que sua formação se deu entrelaçada ao Estado, após a regência do imperador Constantino. Este esquecimento foi paralelo ao de outras doutrinas cardeais da Bíblia, sufocadas e suplantadas pelas tradições pelas conveniências da igreja, concretizando-se no humanismo pragmático de Tomás de Aquino. Reapareceu em todos os movimentos pré-Reforma que desabrocharam na Idade Média, sendo uma constante, paralelamente às outras doutrinas chaves da Bíblia, entre os valdenses (seguidores de Waldo), os huítas (seguidores de João Huss) os lolardos (seguidores de Wycliff). Lutero a reviveu na reforma do século 16, que, despertando para as doutrinas fundamentais que haviam sido mumificadas pela igreja católica, a defende e a proclama, principalmente em seu livro De servo arbítrio (A prisão do arbítrio), escrito em resposta a Erasmo de Roterdã. Constante em todos os movimentos pós-Reforma, por exemplo nos escritos e tratados de Melanchton, Zuínglio e João Knox, teve seus ensinamentos sistematizados por Calvino, que reapresenta e organiza a posição de Paulo e de Agostinho em seu tratado em seu tratado Institutas da religião cristã e em outros livros e comentários bíblicos, fundamentando a posição da igreja protestante contra os arminianos. Nessa ocasião, sofre ataques apenas de Jacobus Armínius e seus seguidores, que assumiram a posição de Pelágio, levando ao posicionamento contrário, oficial, conhecido como os Cânones de Dort (Dordrecht) - o qual resume a doutrina reformada sobre a soberania de Deus na salvação, refletindo igualmente a interpretação bíblica dessas doutrinas contidas no Catecismo de Fé Belga. Constituiu-se no posicionamento oficial de quase todas as denominações que se afirmaram após a Reforma.
Dias Lopes, Hernandes - Romanos o Evangelho segundo Paulo - Editora Hagnos - p. 333-338